Tuesday, January 15, 2013

Espanando os grãos microscópicos de machismo

Ultimamente tenho lido com frequência discussões em redes sociais questionando o hábito pouco saudável de a sociedade atribuir a culpa de violência sexual contra as mulheres... às próprias mulheres! Se isso soa absurdo para uma parcela ínfima da sociedade, podemos dizer que já estamos diante de um grande avanço. Mas, além da grande maioria que não enxerga o absurdo dessa acusação - infelizmente ainda é um fato -, é lamentável que grande número de pessoas que se dão ao trabalho de refletir sobre a questão só o façam movidos pelo repúdio a tais atos de barbárie, quando o machismo nos é esfregado violentamente na cara. Grande parte dessas pessoas ainda guardam seus grãos de machismo, tão ou mais prejudiciais do que aquilo que nos salta aos olhos, justamente por passar despercebido. Quer ver?

Um dos conceitos mais bizarros que conheço - que ainda é muito forte - é o tal do "cavalheirismo". Veja se faz algum sentido: eu aprendo desde criança, na escola, que devemos fazer o bem sem olhar a quem e, depois de "mocinha", aprendo a atrelar valores como solidariedade ou gentileza ao gênero? Ser gentil, de repente, torna-se uma obrigação do homem para com a mulher? O homem tem obrigação de me ajudar se me vê carregando peso além do que posso suportar, mas eu não posso fazer isso se estou com as mãos desocupadas e vejo um homem sobrecarregado diante de mim? Ah, entendo: para ele, me ajudar é uma obrigação (ele vai me mostrar o quanto é forte) e, para mim, ajudá-lo é uma opção (que pode até não ser bem-vista porque posso estar questionando sua "macheza" ao carregar peso). Não me soa coerente.

Para entender o quanto até pessoas mais esclarecidas guardam seus grãos de machismo, vou contar uma história que me marcou muito por me mostrar o quanto a sociedade está longe de enxergar que homens e mulheres são igualmente humanos: iguais em direitos, iguais em deveres.  Parece óbvio? Veja só isto.

Certa vez, arrumei um namorado. Morávamos bem distantes um do outro, uns 35 km. A primeira vez que marcamos de sair, ele me ligou e disse: "A que horas vou buscá-la?". Eu me espantei: "Na minha casa?". "Sim." "Não é necessário, está cedo, não há perigo em eu pegar um ônibus, me encontra no shopping, que é mais central. Na volta, você me leva em casa, porque aí, sim, é perigoso eu voltar sozinha." Ficou combinado assim, e assim foi instaurada a rotina. Muita gente me questionou a respeito, mas aleguei que não achava justo: éramos estagiários, vivíamos com pouquíssima grana (todo mundo sabe que bolsa de estágio não é nenhuma delícia). achava no mínimo injusto o cara comprometer boa parte da sua bolsa abastecendo o carro (diga-se de passagem dos pais) por comodismo meu. (E, sim, isso faz muita diferença no orçamento de quem vive de bolsa - experiência própria.)

Anos depois, estava eu concluindo minha primeira graduação. Imprimi as quatro vias da minha monografia para levá-las ao mesmo velho ponto de encontro (shopping), onde eu as encadernaria e nos encontraríamos para comer algo e dar um passeio. Estava um dia bem feio, chuvoso e saí de casa sob uma chuva torrencial carregando comigo o fruto de quase um ano de trabalho: as quatro vias do meu trabalho de conclusão. Nesse momento, eu esperava a mesma solidariedade que tive ao "poupá-lo" da "obrigação social de macho": ali, sim, era necessária uma carona, a chuva poderia danificar tudo. Mas a carona não me foi oferecida. E também não pedi.

Ao chegar em casa, comentei chateada com minha mãe o que tinha acontecido e a minha expectativa de que ele fosse me buscar em casa e poupasse meu trabalho da chuva. Minha mãe me repreendeu, disse que a culpa era minha, que eu o "tinha acostumado mal" ao ter "liberado" de vir me buscar, anos atrás, lá no comecinho. Agora, alegava ela, ele estava acomodado por minha culpa. Ele não me dava valor (como se eu fosse mercadoria e valorasse meu "uso"). Disse-lhe que não me arrependera um só momento de ter "liberado", que não tinha a menor vocação para princesinha e que agira de acordo com minha consciência. Que apenas esperava o mesmo dele: não "cavalheirismo", mas solidariedade. Qual a diferença entre os dois? Esta último é universal, ao passo que o primeiro foi socialmente construído para maquiar uma condição de dominação.

Se há "cavalheirismo", porque não há "damismo"? E se os dois existissem e fossem equivalentes, não estaríamos falando de "humanismo", a condição que nos faz semelhantes?

Apenas queria ressaltar que minha mãe, a despeito dos trinta anos (portanto, algumas gerações) que separam nossas idades, é uma pessoa muito esclarecida e de mente muito aberta. E não disse isso de forma alguma para me ofender, mas porque acreditava que tinha agido mal, movida por "essas ideias feministas". Ocorre que, pelo menos ali, não eram ideias feministas. Eram valores humanos. Porque enquanto atrelarmos a solidariedade (um valor universal, creio eu) a questões de gênero (portanto socialmente construídas), sempre teremos mulheres que, mesmo empregdas e remuneradas, acharão justo que as despesas recaiam sobre os homens. E isso, embora superficialmente e sob uma visão bem míope, pareça uma vantagem para nós, apenas reforça a nossa condição de bonequinhas de porcelana, de quem os homens podem cuidar ou proteger, mas a quem podem maltratar e violar quando julgarem conveniente. Afinal, cada um faz o que bem quer com os "objetos" que "possui".