Tuesday, December 02, 2014

Carta a Andressa

Andressa,

Não a conheço, no máximo devo ter ouvido seu nome nesses programas de fofoca que vivem de urubuzar a vida alheia. Mas foi com muito pesar que recebi a notícia de que você foi parar na UTI por um procedimento estético malsucedido. Foi com igual pesar que vi noss@s semelhantes lhe negarem solidariedade e ainda culpá-la pelo sofrimento pelo que tem passado e por uma única razão: porque você agiu movida por um tal "culto à estética", por isso merece um coma. Parece absurdo, não é?

Não sabia precisar se meu pesar era como cristã, como feminista, como pesquisadora ou simplesmente como ser humano. Mas é como mulher igual a você que me solidarizo e que estimo sinceramente suas melhoras, que você saia dessa, que você seja poupada de um fim trágico ou de uma sequela. Porque da língua ferina você não será, não está sendo poupada. Porque muitas de nossas semelhantes estão neste momento assinando embaixo de toda essa manifestação de preconceito e moralismo raso que só empobrecem nossos direitos.

Andressa, seu corpo é seu. E pouco me importa se "você ganha a vida mostrando a bunda", como li alguém bradar muito arrogantemente por aí. Isso não te faz menos humana, menos digna de solidariedade, menos dona do seu corpo. O que me entristece, para além da dor de sua família, é também saber que toda essa opacificação da solidariedade se justifica por uma crença profundamente arraigada: a de que o nosso corpo é um domínio público, sobre o qual gente que nunca nos viu na vida se acha no direito de opinar. Além disso, a estética é ao mesmo tempo cultuada e demonizada na nossa sociedade. É meio estranho entender porque as pessoas nos julgam se estamos fora do padrão e nos julga se tentamos aderir a um padrão. Como se não bastassem se acharem no direito de exercer um poder sobre nós, el@s nos fazem da maneira mais controversa possível.

Gostaria de lembrá-la de que as mesmas pessoas que vão ensinar aos seus filhos que eles devem ser felizes com a sua profissão e escolher um ofício que lhes dê realização também vão censurar a sua profissão. Muitos serão hipócritas ao se deleitar com a imagem de seu corpo numa revista ao mesmo tempo que a censuram pelo oficio que escolheu. Por fim, gostaria de dizer que desejo não só suas melhoras, como que você fique boa, sem sequelas inclusive estética, porque desejo que você seja feliz e bem-resolvida com seu espelho, que você cultive (ou cultue) sua beleza dentro do padrão que você escolheu, porque - nunca é demais lembrar - seu corpo é seu!

Não por acaso, a música dos Titãs "O Pulso" cita hipocrisia como doença. Por isso, desejo melhoras. Não só a você, pelo seu estado físico, mas à nossa sociedade, por essa mazela, que já se enraizou.

Macabea



Sunday, November 02, 2014

A vida aos olhos de um pessimista

Sou pessimista. Sempre fui. Não sei precisar se pessimista de nascença ou de vivência, mas pessimista. Convicta. E, acredite, não vejo problema nisso. Não acho um defeito, a menos pelos outros. É isso. Sabe aquela história de que o problema são os outros. No caso de um pessimista, isso é a mais pura verdade. Não me levem a mal, mas o problema do pessimista são os outros (ou seria o grande Outro?). Não os outros você, minha mãe, meu amigo, colega de trabalho... não. Os outros no coletivo. Explico: não é fácil ser um pessimista. Aí você me diz que sou incoerente por ter dito há pouco que não via problema nisso. Pois é: eu não vejo, outros veem.

Não é fácil ser pessimista num mundo de otimistas. É duro porque eles parecem ingênuos e é duro porque eles não hesitam em recriminar quem ousa não acreditar nisso. Os otimistas também não têm culpa: somos socializados num mundo em que o fracasso é recriminado, a felicidade é perseguida (seja lá o que ela signifique, porque em cada sociedade ela significa algo distinto), tudo pode, deve, precisa dar certo, dar certo sempre. Então, ser otimista é padrão, ser pessimista é o desvio.

Eu não gosto de otimismo. Acho muito mais que ingênuo, acho conivência nossa com esse imperativo do sucesso absoluto, desumano com quem não é sempre bem-sucedido (ou seja, todo ser humano normal fora de uma rede social). Eu me sinto profundamente subestimada em minha capacidade de juntar duas premissas e elaborar uma conclusão quando um indivíduo me chega e diz "tudo vai dar certo" sem um argumento minimamente plausível que justifique essa crença. Isso me lembra aquela velha frase-feita (cujo autor desconheço, perdoem) de que todo otimista é um pessimista mal-informado. E que, para mim, faz todo o sentido.

Pois bem, aonde eu quero chegar com isso? Lugar nenhum. Apenas mostrar que o pessimismo é só mais uma forma de ver o mundo. Não vou ficar horas aqui divagando sobre o mapa cognitivo de um pessimista, apenas ressalvar que, como toda visão de mundo, esta é legítima. Portanto, parem de tratar o pessimismo como um mal a ser combativo e olhar o pessimista como um infeliz, a sua visão de mundo como uma sentença de infelicidade. Porque daqui, do meu cantinho, eu observo o otimista e todo o seu discurso de livro de autoajuda e me pergunto como esse indivíduo lida com a frustração. Se nós, pessimistas, lidamos melhor com ela? Não sei dizer. Apenas posso garantir que, em todas as nossas projeções, ela está ali, como uma real possibilidade. Se isso nos habilita a conviver melhor com ela, isso já é outra história...

Saturday, January 18, 2014

Antirrábica [des]humana

Certa vez, assisti na TV uns veterinários protestando contra a total ausência do Poder Público quanto às medidas de imunização contra a cinomose, uma doença que causa muito mais sofrimento.  ao canino do que a raiva. Segundo ele, os representantes do Poder Público alegava que a cinomose não era transmissível aos humanos, não representava um risco para nós e, por isso, não se imunizavam os cães. Fiquei chocada com tamanho antropocentrismo, com esse pressuposto ridículo de que nossos direitos estão acima dos direitos de quaisquer espécies.

Pois bem... esta semana, cheguei à universidade e fui recebida por uma gatinha que sempre está lá em frente ao centro onde estudo. Ela fica sob os cuidados de um senhor que vende lanches em frente ao prédio. Cheguei lá, falei com ela, ela miou para mim e fiquei alisando, enquanto ela passava a cabeça na minha mão. Num determinado momento, ela me mordeu com força, fazendo um corte meio profundo na minha mão. O senhor me informou que ela era vacinada, que não havia perigo. Mas as pessoas começaram a me botar terror dizendo que animais vacinados não desenvolviam a raiva, mas podiam transmiti-la e... bem, eles venceram: fui a um posto de saúde tomar vacina.

Foi nesse momento que me deparei com um discurso surreal. A médica disse que os animais da universidade eram um estresse na vida dela, pois estavam sempre fazendo vítimas. Que a federal era um caso de saúde pública, pois estava repleta de animais por toda parte atacando pessoas (pensei que ela estivesse falando de hooligans, mas não, era de animais). Que o "pessoal da defesa de animais" fazia "um trabalho muito bonito", mas que eles não sabiam do risco que aquele tanto de cães e gatos soltos por aí blá bá blá Que já tinha mandado a carrocinha ir lá na universidade uma vez recolher certa cadela, mas que os professores e alunos fizeram um paredão e impediram (ufa!).

Então, disse que o ideal seria chamar a carrocinha para recolher a gata. Disse-lhe que a gata estava todo dia no centro onde estudo, que eu podia observá-la todo dia sem a submeter a nenhum tipo de sofrimento. Ela então pediu que eu levasse a gata para minha casa e a observasse. Disse-lhe que ela ficava sob a responsabilidade de um senhor, que ele é muito apegado a ela (e ela a ele), que a gata sentiria falta do cantinho dela (na árvore onde ficam sua água e ração).

Saí de lá com ódio dessa médica. Ela dizia aquele horror todo como se estivesse falando a coisa mais normal do mundo, como se a carrocinha fosse uma coisa boa, como se colocar a nossa saúde acima dos direitos dos animais fosse algo justo e legítimo. Saí de lá com nojo de todo esse discurso. Cheguei à universidade, conversei com o dono da gatinha, ele me disse que ela passava a noite na universidade sozinha, mas que durante o dia estava sempre lá, sob os cuidados dele. Que ela estava vacinada e com toda a documentação em dia. Que uma veterinária voluntária lá da universidade rural prestava assistência à gatinha, ia sempre lá, vacinava, cuidava... aquilo me deu um alívio: o mundo não é só feito de egoístas.

Quanto à minha mão, tomei antirrábica "humana", amanhã tenho a segunda dose, e todo o grande infortúnio será passar quinze dias sem beber (depois dos cinco meses de celibato pós-isotretinoína). Infortúnio pouco para punir uma pobre gatinha com um destino tão [des]humano.