Wednesday, July 27, 2016

Cuidando do picumã em tempos de saberes colaborativos

Do ano passado para cá, comecei a me interessar pelas rotinas capilares sem sulfato e sem shampoo não pelo intuito de segui-las, mas pelo interesse que eu tinha de estudar as relações de consumo. Enfim, visitei blogs, canais no YouTube e até entrei em um grupo do Facebook que tem a finalidade de reunir informações e oferecer ajuda às iniciantes nas técnicas. Essa busca me fez refletir sobre a quantidade de derivados de petróleo no nosso cabelinho, e terminei por eliminá-los da minha vida, além de reduzir drasticamente o uso de shampoo, optando por aqueles de formulações menos agressivas. 

Nesse processo, a porta de entrada foram os blogs e grupos, mas, como pesquisadora, tenho essa característica de questionar, duvidar, fuçar, e terminei por seguir meu caminho estudando, buscando sites especializados, entendendo a formulação das substâncias. Contou a meu favor o fato de eu ter uma enorme simpatia por química (e ter sido boa aluna em 1900 e ensino médio), de modo que lia textos imensos com toda a boa vontade do mundo - e os entendia.

Há pouco mais de um mês, voltei ao grupo, agora como praticante de rotina shampoo leve, e fiquei bastante preocupada com as implicações dessa facilidade com que informações se criam e disseminam em ambientes colaborativos. A contribuição das blogueiras para as meninas que optam por uma rotina capilar livre de sulfatos fortes, silicones e derivados de petróleo é inegável, até porque muitas praticantes possuem pouca escolaridade e precisam aprender um troço um tanto complexo (como a composição de cosméticos para higienizar e embelezar os cabelos) numa linguagem acessível. No entanto, o risco de telefone sem fio é real, e eu vejo todo dia as consequências disso. 

Um exemplo desse risco são as famosas "misturinhas caseiras". Longe de mim achar que só o que é produzido pela indústria cosmética tem credibilidade. Acho superválido, inclusive, quem substitui o shampoo por ingredientes naturais. Acontece que manipular substâncias já prontas é algo perigoso, porque há interações. Então, pegar um sabonete, derreter em banho-maria, misturar com óleo de coco e usar como shampoo é extremamente arriscado, não só pela interação entre as substâncias, mas também por fatores como temperatura, acondicionamento, etc. Tudo isso altera a composição original e consequentemente a funcionalidade, a durabilidade, etc. Além de o risco de alergias ser aumentado, você não poderá cobrar do SAC uma posição acerca de um produto que você "batizou".

Outra coisa que me incomoda é a moda do co-wash (não a técnica em si, eu a utilizo inclusive). A técnica consiste em lavar o couro cabeludo com um condicionador cuja composição não deposite resíduo nos fios (ou seja: sem derivados de petróleo e sem silicones). Os adeptos assumem que a composição do produto é capaz de higienizar o couro cabeludo desde que não haja resíduos dos "proibidões" que mencionei. Os condicionadores específicos para essa práticas contêm um agente limpante suave, como o cocoamidopropilbetaína (o famoso anfótero). Isso é importante porque higienizar o couro cabeludo não é só remover resíduo dos produtos usados, mas também eliminar micro-organismos que podem causar uma série de problemas no couro cabeludo, alguns irreversíveis. No entanto, muitas pessoas têm utilizado condicionadores inespecíficos para esse fim. "Ah, se não tem silicones nem derivados de petróleo, então pode, né?" E, sem agentes limpantes, você corre o risco de apenas remover resíduos de produtos, mas manter fungos e bactérias, por exemplo. Algumas pessoas têm optado por comprar o "anfótero" e misturar a seus condicionadores para otimizar a detergência. Qual é a bronca? Manipulam-se duas substâncias cujas formulações podem não ser compatíveis ou cuja interação seja tóxica a seu organismo. 

A terceira, e talvez a mais incômoda dessa jornada, é a imposição do consumo como único caminho para assumir cabelos crespos. "Tem que [sic] fazer cronograma capilar." "Tem que fazer reconstrução." "Tem que fazer umectação" "Tem que ter 'tal produto' no seu 'arsenal'." "Tem que..." Não, eu não tenho de fazer nada. Cronograma capilar não é uma necessidade. Estar com a cabeça carregada de cremes não é um pré-requisito para ter cabelos bonitos. Você não precisa usar óleos no cabelo se não quiser (eu, por exemplo, detesto!). Você não precisa se preocupar com o desejado day-after (o dia após a lavagem, em que, se finalizado com um bom produto, o cabelo acorda ok e não precisa lavar novamente para remodelar os cachos). Eu, por exemplo, gosto de lavar todo dia, mas já li que água demais faz mal (oi? entupir o cabelo de substâncias faz bem, água faz mal, senta lá, Cláudia!). Um dia queriam me convencer a fazer uma reconstrução a pulso, mesmo eu sabendo que meu cabelo é absolutamente saudável, sem química nem danos mecânicos. 

Então, para minhas amigas que estão começando nas técnicas (sem shampoo ou shampoo leve), meu conselho é: estudem como é seu cabelo e seu couro cabeludo e se observem. Observem-se muito porque nem tudo que funciona com a menina do grupo que tem cabelo feshoso vai funcionar com você (eu, por exemplo, passo mais de um ano com um creme de pentear porque se eu puser mais que o tamanho da minha unha o cabelo fica um grude). E encarem essa vivência como uma oportunidade de consumir de forma minimamente consciente, de entender a composição do que você põe na sua cabeça (assim como no seu prato ou na sua pele) ou mesmo de pressionar a indústria cosmética por repensar suas fórmulas (a retirada de parabenos de algumas formulações é um exemplo disso). A quem frequenta salões, é um oportunidade de discutir com seu profissional tudo que será colocado no seu cabelo. Afinal, estamos falando do nosso corpo! 


Friday, July 31, 2015

A abominável e tenebrosa "Indústria de Multas"

De tempos em tempos, sinto que o Face se transforma num repositório de mimimi, aí eu preciso dar uma fugida pra cá, para espairecer um pouco. Hoje é um desses dias. Tava froids lá pelo Face, precisei sair de casa algumas vezes e pronto: foi o suficiente pra eu me engasgar.

Esta foi uma semana recheada de salas de espera. Numa dessas, leio uma reportagem de um dos jornais locais sobre a instalação de sensores em duas importantes vias do Recife, buscando inibir excesso de velocidade, fechamento dos cruzamentos, avanço de sinal, parada sobre a faixa de segurança, entre outras infrações. E, claro, meu lado masoquista não resistiu e fui ler a página de comentários. Ainda bem que não tava de estômago cheio, mandaria um raulzão na certa. Não demorou muito para a expressão "indústria de multas" povoar um sem-número de comentários. E, mais uma vez, uma equação que nunca fecha se desenhou na minha cabeça: se você não infringe, por que haveria de temer multas?

Vamos lá: a gente sabe que a gestão das nossas vias deixa muito a desejar, que a carga tributária não é diretamente proporcional às melhorias das nossas estradas, a segurança pública tá um f*rico e, o mais grave, que o problema não está circunscrito à esfera da ineficiência, mas também da ética. Parece coerente falar em "indústria de multa" quando a gente se depara com N relatos de multas indevidas (que, como nunca me aconteceu, nem sei como funciona, nem tenho argumentos para julgar).

Mas e o cidadão? Onde ele vive? De que se alimenta? Pois é. Sempre que essas discussões intermináveis rolam, eu fico me perguntando como o cidadão se vê nesse emaranhado de agentes. Ou você acha que o carro se liga e sai andando pelas vias públicas à revelia dos seus proprietários? Por enquanto, um condutor é imprescindível (tem umas tecnologias aí, né?). E quem é esse condutor? E mais: como você se vê enquanto condutor?

A minha reação quando eu soube que instalariam mais um mói de sensor da "indústria de multas" foi: ok, próxima notícia. Porque me parece tão óbvio que a multa é uma punição por infração, logo quem não infringe ___________ (complete a sentença da forma que julgar mais coerente). Você poderia argumentar que, sim, multas indevidas chegam à casa do condutor (e, claro, isso é um aspecto disfuncional), mas você quer me dizer que todas as multas que chegam à casa do condutor são indevidas, fruto de corrupção, "se-colar-colou"? Você quer argumentar que as estatísticas sobre acidentes motivados por excesso de velocidade, ultrapassagem de semáforos e atos de imprudência diversos são invenção da cabeça mirabolante do Poder Público? Você sustenta o argumento de que, se você respeita os limites de velocidade da via, respeita sinalização e conduz com prudência, a instalação desses sensores vai mudar algo na sua vida?

Pois bem, eis o que esses sensores mudarão na minha rotina: NA-DA. Não se trata de lamber o próprio saco e pagar de cidadã exemplar, porque eu odeio isso (e tô longe disso), mas como cidadã sempre me pareceu cretino que eu precise ser vigiada para cumprir aquilo que é tão-somente meu dever. Por isso, sensor nunca afetou minha vida... Okay, me sinto incomodada com a instalação de sensores em determinados sinais com histórico de assalto, mas penso que avançar sinais nessas vias não deveriam ser a solução, mas, sim, rever a segurança nesses locais. Ou seja: cobrar ações efetivas de segurança, em vez de cobrar o fim da "indústria de multas".

Isso não significa que estou passando a mão na cabeça do Poder Público e legitimando as sandices que têm operado nas nossas vias, mas acho que não custa pedir encarecidamente que toda vez que você vir o trânsito parado, "indústria da multa" crescendo e oprimindo cidadãos de bem que sempre respeitam os limites de velocidade, coloque-se na posição de cidadão e pergunte-se em que está contribuindo pra essa m**** toda.

Pra finalizar, ontem à tarde tava indo ao médico (de busão, porque eu não tô feito corno pra ir àquele balaio de gatos que é Ilha do Leite de carro e ficar mendigando um espaço pra estacionar) e atravessei uma das vias com facilidade porque ela estava completamente parada. Olhei para a frente e percebi que o sinal estava verde, mas ainda assim os carros não circulavam. Mais adiante (eu andava, eles não), percebi que, quando o sinal da transversal ficava amarelo, os carros, em vez de parar, aceleravam e, com isso, fechavam o cruzamento. O trânsito no Recife é assim: cada um que salvaguarde seu c* em detrimento dos outros. Com isso, o sinal fechava, mas o cruzamento estava fechado, e a outra via não avançava nunca. Pensei: seriam esses mesmas pessoas que fecham o cruzamento sem o menor peso de consciência que reivindicam o fim da indústria de multas? Pois meus mais sinceros votos de: multa nelas! E muita, pra deixar a canalhice de lado. E só um toque: se não existissem ladrões, não existiriam cadeados. Pense nisso antes de esbravejar contra o próximo avanço da indústria de multas...



Tuesday, June 16, 2015

Maternidade voluntária?

Eis que do nada me deparo com este texto sobre maternidade voluntária. Eu leio zilhões de textos não acadêmicos sobre direitos reprodutivos, sigo muitas páginas de feminismo no Face e fatalmente esse tema circula pela minha TL inúmeras vezes por dia. Mas este especialmente me chamou atenção pela expressão maternidade voluntária, que me soou como um soco no estômago. Porque não, a maternidade não é voluntária, não há espaço para a maternidade voluntária na nossa sociedade, e esse incômodo que sinto está longe de se restringir à questão do aborto.

Explico: não quero ter filhos, mas não gostaria de algum dia na vida precisar praticar um aborto. Embora seja totalmente a favor do direito à interrupção, eu não gostaria de fazê-lo por motivações pessoais (mais precisamente, religiosas), que não cabem ao Estado. No entanto, não sou respaldada na minha escolha, e isso não se restringe ao aborto, mas à própria decisão de não ter um filho. Já perdi as contas de quantos médicos se recusam a implantar um DIU em mulheres que nunca pariram. O motivo? "Pode" causar uma pequena lesão no colo do útero, "podendo" impedir uma gestação futura. Então, diante dessa "possibilidade", não bastaria assinar um termo de consentimento (daqueles que a gente assina quando vai fazer exames que "podem" causar 94848595848 complicações bizarras)? Não, a mulher não é senhora do seu corpo, e como tal não pode assumir os riscos da decisão que toma. Esterilidade permanente também é outra condição que compete ao Estado. Minha mãe estava grávida de mim quando se deparou com a notícia de que ficaria viúva em pouco tempo. Então, ela estaria sozinha numa jornada que dura apenas a vida inteira, numa responsabilidade perene. Minha mãe pôs os consultórios abaixo pedindo para realizar uma laqueadura após o parto, demanda que os médicos recusavam porque ela "precisava ter no mínimo três filhos". Um gozadinho ainda teve o desaforo de dizer que ela estava cometendo crime de "lesa-pátria". Observem: ela "poderia" vir a casar novamente, ela "poderia" vir a querer ter outros filhos, mas o que deveria vir ao caso não deveria ser o que ela queria? Naquele momento, ela queria a esterilidade permanente. Mas o nosso querer não basta...

O discurso é sempre o mesmo: um dia você PODE vir a querer filhos. Como se não bastasse a crença de que a maternidade é o único curso de ação possível e imaginável na vida de uma mulher, ainda há a crença de que eu não posso decidir sobre meu corpo. Penso que se um dia uma mulher opta pela esterilização permanente e se arrepende, o peso desse arrependimento é algo que só compete a ela (e no máximo a seu companheiro). Então, por que o arbítrio não compete a ela? Sinceramente, até hoje não me foi dada uma explicação convincente.

Enquanto isso, mulheres que não desejam ter filhos seguem uma vida inteira tomando hormônios sintéticos e lidando com suas complicações (muitas vezes varridas para debaixo do tapete por grupos de interesse - que não são poucos). Que algumas mulheres optem pela pílula ou o preservativo (ou os dois) quando a não maternidade é uma condição provisória, quando em determinado momento desejam interromper essa condição e reproduzir, me parece absolutamente razoável. Mas quem assegura os direitos reprodutivos daquelas que vislumbram a não maternidade como uma condição permanente? A indústria farmacêutica, com seus hormônios sintéticos, de quem serão reféns até a menopausa, lucrando complicações vasculares, mastalgias, enxaquecas e os inúmeros efeitos colaterais das pílulas?

Não, a maternidade não é voluntária. E a não maternidade é uma condição subversiva pela qual muitas vezes pagamos com a nossa saúde ou mesmo com a nossa vida. Não venham me falar em maternidade voluntária quando a maioria das portas estão fechadas para nós.

Wednesday, February 04, 2015

Meu amigo "veadinho" e os bem-intencionados do nosso círculo social

O caso GogoJob me deixou bem feliz com a postura do portal (sobre ficar triste com a postura da agência, não me surpreendi, sou professora de Administração e trabalho há algum tempo com meus alunos as armadilhas dos discursos bonitos de "gestão de pessoas"). Mas a discussão me trouxe a lembrança de uma situação que vivenciei ano passado. Num salão, tava eu lá conversando com uma das profissionais quando ela me contou que lá não havia um cabeleireiro gay porque o dono era evangélico e acreditava que admitir um profissional com esse perfil iria de encontro à sua religião.

E continuou: "O pior é que tem muita gente aqui que acha que ele tá certo, sabia?"
Eu, estarrecida: "Como assim?!"
Ela: "Quase batem em mim quando eu disse que queria ter um coleguinha 'veadinho', que adoraria ter um 'veadinho' aqui, esse ambiente de trabalho ficaria bem leve e engraçado. Eu queria um 'veadinho' aqui pra animar nossos dias"

Respirei fundo. Era só o que eu conseguia fazer naquele momento.

Esta talvez seja uma das formas mais bizarras de lidar com os LGBTs: como ferramenta, instrumento, meio pra qualquer coisa. Eu poderia dizer: "Amiga, não é bem assim, o seu coleguinha gay, se aqui trabalhasse, teria as mesmas funções que você, seria cabeleireiro/maquiador/esteticista, e não palhaço. Não tá aqui para 'animar' o dia de ninguém". A frase, apesar de "bem-intencionada", tem algo de perverso.

Nessa linha de pensamento "bem-intencionado" (nunca ouvi frase mais sábia do que "o inferno tá cheio de bem-intencionados"), lembrei da declaração de um conhecido que um dia quase me fez vomitar: "Eu não tenho nada contra gay. Eu acho ótimo que 'minha mulher' [ele deve ter comprado uma] tenha um amigo gay, porque aí ela não me perturba com os problemas dela. Quando ela vem me encher com os problemas, mando ela conversar com o amigo 'veado' dela, porque ele não corre o risco de comer ela mesmo...". Eu nem vou entrar no mérito da qualidade da relação que ele cultiva com a esposa dele (segundo meu bophe, pra esse tipo de homem, mulher é tão somente a parte da b*ceta que ele não come). Mas tratar o gay como um bichinho de pelúcia (porque nem bicho de estimação deve ser tratado dessa maneira) ou a Barbie da sua companheira é no mínimo estupidez.

Queria dizer que, se você acha que tá contribuindo para a dignidade do LGBT com esse tipo de postura, você tá fazendo isso errado, amigue. Sobretudo porque a dignidade dessas pessoas passa pela atitude simples que é vê-la como igual a você, olhar o ser humano antes da orientação sexual, e não o contrário. Isso parece muito óbvio, mas não entra na minha cabeça que em pleno século XXI saber com quem A ou B vai pra cama seja um critério para definir que papel aquele indivíduo vai ocupar na sociedade. Se mais intimidade tivesse, diria à moça do salão "Amiga, gay não é palhaço e não tá aqui pra te fazer rir, o nome do que você procura é 'cócegas', qualquer criança pode fazer isso por você". Ao conhecido, mandaria confiar mais no próprio pau. No dia em que meu bophe precisar que eu só me relacione com pessoas que não correm o risco de comer, eu mando ele procurar um psiquiatra, não uma companheira. Aliás, companheiro é tudo que o cidadão da história não é. Mas isso é outra - e longa - história...

Tuesday, December 02, 2014

Carta a Andressa

Andressa,

Não a conheço, no máximo devo ter ouvido seu nome nesses programas de fofoca que vivem de urubuzar a vida alheia. Mas foi com muito pesar que recebi a notícia de que você foi parar na UTI por um procedimento estético malsucedido. Foi com igual pesar que vi noss@s semelhantes lhe negarem solidariedade e ainda culpá-la pelo sofrimento pelo que tem passado e por uma única razão: porque você agiu movida por um tal "culto à estética", por isso merece um coma. Parece absurdo, não é?

Não sabia precisar se meu pesar era como cristã, como feminista, como pesquisadora ou simplesmente como ser humano. Mas é como mulher igual a você que me solidarizo e que estimo sinceramente suas melhoras, que você saia dessa, que você seja poupada de um fim trágico ou de uma sequela. Porque da língua ferina você não será, não está sendo poupada. Porque muitas de nossas semelhantes estão neste momento assinando embaixo de toda essa manifestação de preconceito e moralismo raso que só empobrecem nossos direitos.

Andressa, seu corpo é seu. E pouco me importa se "você ganha a vida mostrando a bunda", como li alguém bradar muito arrogantemente por aí. Isso não te faz menos humana, menos digna de solidariedade, menos dona do seu corpo. O que me entristece, para além da dor de sua família, é também saber que toda essa opacificação da solidariedade se justifica por uma crença profundamente arraigada: a de que o nosso corpo é um domínio público, sobre o qual gente que nunca nos viu na vida se acha no direito de opinar. Além disso, a estética é ao mesmo tempo cultuada e demonizada na nossa sociedade. É meio estranho entender porque as pessoas nos julgam se estamos fora do padrão e nos julga se tentamos aderir a um padrão. Como se não bastassem se acharem no direito de exercer um poder sobre nós, el@s nos fazem da maneira mais controversa possível.

Gostaria de lembrá-la de que as mesmas pessoas que vão ensinar aos seus filhos que eles devem ser felizes com a sua profissão e escolher um ofício que lhes dê realização também vão censurar a sua profissão. Muitos serão hipócritas ao se deleitar com a imagem de seu corpo numa revista ao mesmo tempo que a censuram pelo oficio que escolheu. Por fim, gostaria de dizer que desejo não só suas melhoras, como que você fique boa, sem sequelas inclusive estética, porque desejo que você seja feliz e bem-resolvida com seu espelho, que você cultive (ou cultue) sua beleza dentro do padrão que você escolheu, porque - nunca é demais lembrar - seu corpo é seu!

Não por acaso, a música dos Titãs "O Pulso" cita hipocrisia como doença. Por isso, desejo melhoras. Não só a você, pelo seu estado físico, mas à nossa sociedade, por essa mazela, que já se enraizou.

Macabea



Sunday, November 02, 2014

A vida aos olhos de um pessimista

Sou pessimista. Sempre fui. Não sei precisar se pessimista de nascença ou de vivência, mas pessimista. Convicta. E, acredite, não vejo problema nisso. Não acho um defeito, a menos pelos outros. É isso. Sabe aquela história de que o problema são os outros. No caso de um pessimista, isso é a mais pura verdade. Não me levem a mal, mas o problema do pessimista são os outros (ou seria o grande Outro?). Não os outros você, minha mãe, meu amigo, colega de trabalho... não. Os outros no coletivo. Explico: não é fácil ser um pessimista. Aí você me diz que sou incoerente por ter dito há pouco que não via problema nisso. Pois é: eu não vejo, outros veem.

Não é fácil ser pessimista num mundo de otimistas. É duro porque eles parecem ingênuos e é duro porque eles não hesitam em recriminar quem ousa não acreditar nisso. Os otimistas também não têm culpa: somos socializados num mundo em que o fracasso é recriminado, a felicidade é perseguida (seja lá o que ela signifique, porque em cada sociedade ela significa algo distinto), tudo pode, deve, precisa dar certo, dar certo sempre. Então, ser otimista é padrão, ser pessimista é o desvio.

Eu não gosto de otimismo. Acho muito mais que ingênuo, acho conivência nossa com esse imperativo do sucesso absoluto, desumano com quem não é sempre bem-sucedido (ou seja, todo ser humano normal fora de uma rede social). Eu me sinto profundamente subestimada em minha capacidade de juntar duas premissas e elaborar uma conclusão quando um indivíduo me chega e diz "tudo vai dar certo" sem um argumento minimamente plausível que justifique essa crença. Isso me lembra aquela velha frase-feita (cujo autor desconheço, perdoem) de que todo otimista é um pessimista mal-informado. E que, para mim, faz todo o sentido.

Pois bem, aonde eu quero chegar com isso? Lugar nenhum. Apenas mostrar que o pessimismo é só mais uma forma de ver o mundo. Não vou ficar horas aqui divagando sobre o mapa cognitivo de um pessimista, apenas ressalvar que, como toda visão de mundo, esta é legítima. Portanto, parem de tratar o pessimismo como um mal a ser combativo e olhar o pessimista como um infeliz, a sua visão de mundo como uma sentença de infelicidade. Porque daqui, do meu cantinho, eu observo o otimista e todo o seu discurso de livro de autoajuda e me pergunto como esse indivíduo lida com a frustração. Se nós, pessimistas, lidamos melhor com ela? Não sei dizer. Apenas posso garantir que, em todas as nossas projeções, ela está ali, como uma real possibilidade. Se isso nos habilita a conviver melhor com ela, isso já é outra história...

Saturday, January 18, 2014

Antirrábica [des]humana

Certa vez, assisti na TV uns veterinários protestando contra a total ausência do Poder Público quanto às medidas de imunização contra a cinomose, uma doença que causa muito mais sofrimento.  ao canino do que a raiva. Segundo ele, os representantes do Poder Público alegava que a cinomose não era transmissível aos humanos, não representava um risco para nós e, por isso, não se imunizavam os cães. Fiquei chocada com tamanho antropocentrismo, com esse pressuposto ridículo de que nossos direitos estão acima dos direitos de quaisquer espécies.

Pois bem... esta semana, cheguei à universidade e fui recebida por uma gatinha que sempre está lá em frente ao centro onde estudo. Ela fica sob os cuidados de um senhor que vende lanches em frente ao prédio. Cheguei lá, falei com ela, ela miou para mim e fiquei alisando, enquanto ela passava a cabeça na minha mão. Num determinado momento, ela me mordeu com força, fazendo um corte meio profundo na minha mão. O senhor me informou que ela era vacinada, que não havia perigo. Mas as pessoas começaram a me botar terror dizendo que animais vacinados não desenvolviam a raiva, mas podiam transmiti-la e... bem, eles venceram: fui a um posto de saúde tomar vacina.

Foi nesse momento que me deparei com um discurso surreal. A médica disse que os animais da universidade eram um estresse na vida dela, pois estavam sempre fazendo vítimas. Que a federal era um caso de saúde pública, pois estava repleta de animais por toda parte atacando pessoas (pensei que ela estivesse falando de hooligans, mas não, era de animais). Que o "pessoal da defesa de animais" fazia "um trabalho muito bonito", mas que eles não sabiam do risco que aquele tanto de cães e gatos soltos por aí blá bá blá Que já tinha mandado a carrocinha ir lá na universidade uma vez recolher certa cadela, mas que os professores e alunos fizeram um paredão e impediram (ufa!).

Então, disse que o ideal seria chamar a carrocinha para recolher a gata. Disse-lhe que a gata estava todo dia no centro onde estudo, que eu podia observá-la todo dia sem a submeter a nenhum tipo de sofrimento. Ela então pediu que eu levasse a gata para minha casa e a observasse. Disse-lhe que ela ficava sob a responsabilidade de um senhor, que ele é muito apegado a ela (e ela a ele), que a gata sentiria falta do cantinho dela (na árvore onde ficam sua água e ração).

Saí de lá com ódio dessa médica. Ela dizia aquele horror todo como se estivesse falando a coisa mais normal do mundo, como se a carrocinha fosse uma coisa boa, como se colocar a nossa saúde acima dos direitos dos animais fosse algo justo e legítimo. Saí de lá com nojo de todo esse discurso. Cheguei à universidade, conversei com o dono da gatinha, ele me disse que ela passava a noite na universidade sozinha, mas que durante o dia estava sempre lá, sob os cuidados dele. Que ela estava vacinada e com toda a documentação em dia. Que uma veterinária voluntária lá da universidade rural prestava assistência à gatinha, ia sempre lá, vacinava, cuidava... aquilo me deu um alívio: o mundo não é só feito de egoístas.

Quanto à minha mão, tomei antirrábica "humana", amanhã tenho a segunda dose, e todo o grande infortúnio será passar quinze dias sem beber (depois dos cinco meses de celibato pós-isotretinoína). Infortúnio pouco para punir uma pobre gatinha com um destino tão [des]humano.