Wednesday, March 27, 2013

O individualismo que segrega

Sou parte de uma família que hoje pertence ao seleto grupo rotulado de "classe C". No passado, éramos chamados de "pobres" mesmo. Como uma criança pobre (ops, classe C), não tive carro em casa. E passei a infância sonhando com o dia em que teria um, que minha mãe poderia comprar um e me levar aos lugares sem ter medo de andar por ruas perigosas e ficarmos em paradas desertas quando fôssemos ao aniversário de alguma coleguinha. Veio a adolescência e, não tendo chegado esse dia (percebendo também que não chegaria), passei a sonhar com o dia em que tivesse meu carro. O dia em que pudesse buscar minhas amigas em casa, sair sem depender de ninguém para voltar, levar minha mãe ao supermercado, à casa das amigas, ao shopping, etc. Achava que meu carro seria minha primeira aquisição ao começar a trabalhar, que tão logo me formasse, já teria um na garagem, etc.

Devo dizer que esse dia demorou um pouco a chegar: já trabalhava há cinco anos e era formada há dois quando finalmente pude comprar meu carro. E diferentemente daquele sentimento de sonho realizado, desejo satisfeito, a sensação foi mais de alívio. Comprara por necessidade. Fazia minha segunda graduação à noite, trabalhava nove horas diárias e morava longe tanto da universidade quanto do trabalho. A realidade foi bem diferente dos sonhos: descobri um trânsito caótico, ruas esburacadas e perigosas, tributos abusivos (que nem de longe se traduzem em melhorias nas nossas estradas), etc. E, entre pegar cinco ônibus por dia e enfrentar essa realidade, tava cada vez mais duro escolher o que era pior.

Por que estou contando tudo isso? Porque sei exatamente a relação que temos com nosso carro, sobretudo uma pessoa de "classe C", para quem ter um automóvel, até pouco tempo, era impensável. Sou muito feliz em ter conseguido comprar meu carrinho e poder ter e proporcionar o mínimo de bem-estar à minha família. Nosso carro é como uma extensão do nosso lar, onde não raro guardamos até nossas tralhas pessoais. E num momento em que temos tão pouco tempo para desfrutar a individualidade do nosso lar, nosso quarto, nosso espaço, é como se o carro nos proporcionasse pequenas pílulas disso.

Ocorre que, entre individualidade e individualismo, o que muda não são só sufixos, mas a maneira como o indivíduo vê a si a ao próximo. E  problema do trânsito reside exatamente nisso: o individualismo, mais que a individualidade, tem guiado as condutas. É por isso que a história do rodízio está causando tanta indignação aqui no Recife. Os argumentos contra têm mais buracos do que a cara do Bob Esponja, mas curiosamente todo mundo se agarra a essas poucas verdades convenientes para defender seu direito de não se separar do carro sob hipótese alguma, mesmo que seja pra ir ali na padaria, que fica a uma quadra da sua casa.

Realmente, o rodízio (ou seja lá qual nome João Braga queira dar a essa sandice) é lamentável e, se o que eu li pela rede for verdade, minha placa será impedida de circular justamente no único dia da semana em que eu preciso invariavelmente usar o carro, porque tenho pouco tempo para me deslocar de um compromisso a outro. Mas mais lamentável que isso é que o senso de coletividade seja imposto ao cidadão, goela abaixo - e, sendo imposto, sem lhe dar o direito de ponderar até que ponto seu direito vai e onde começa o dos outros.

Dessa forma, ninguém está cego a ponto de perceber que o trânsito no Recife tornou-se insuportável, nem retardado a ponto de não saber nossa corresponsabilidade sobre isso. Então vamo-nos agarrar a nossas pequenas e convenientes verdades. A primeira delas, "o transporte público não nos dá condições". Mentira? Não, o transporte público daqui é caro e um nojo em todos os aspectos! Mas, quando você pode comprar um carro, você abandona a questão assumindo que busão lotado não é mais problema seu? Ou vai pra rua brigar por um transporte público de qualidade, ocupar sei lá o quê, fazer esses protestos no qual os recifenses são especialistas? Você pega seu carrinho, e a partir desse dia transporte público não é mais problema seu. Mas a mobilidade continua sendo, meu caro amigo. E mais dia menos dia você de depara com a impossibilidade real de circular com seu carrinho novo, lindo e cheirosinho (diferente do PE-15/Boa Viagem), limitado a usar só duas marchas: primeira e ré. Então surge alguém, um salvador, um profete, e estabelece a solução mais idiota possível para um problema que, por sua vez, é resultado de nossa idiotice.

Acho curioso que as nossas classes mais esclarecidas e mais abastadas (que no geral são as mesmas pessoas) estejam ultimamente tão mais ativistas do que há alguns anos, brigado pelo que é justo brigar, ocupando isso e aquilo, reivindicando os direitos sobre o equipamento urbano, etc. Só acho curioso que, na pauta dessas discussões, pouco ou nada se veja no sentido de reivindicar melhores condições de transporte público: frota melhor, tarifas mais justas, segurança nos pontos e nos transportes mesmo, mais linhas, mais integrações, etc. E acreditem, não usuários de busão: isso é um problema grave que causa muito sofrimento a quem não tem outra escolha senão pegar um PE-15 lotado às 6h da manhã. Talvez porque transporte público ainda seja uma realidade muito distante dessas pessoas, que são justamente aquelas que têm voz e esclarecimento para se articular e lutar pelas coisas. 

Então, o que vai acontecer se essa sandice de rodízio prevalecer? Os mais abastados, mais uma vez, vão fugir à luta, assumindo que não se trata de uma luta deles, na medida em que podem ter mais de um veículo de placa diferente em casa. E assim darão seu jeitinho brasileiro. Já os menos abastados (classes C e D) vão ser obrigados a voltar para a realidade de sempre, o busão lotado, com a qual vão-se resignar porque já estão acostumados a isso. Será como um sonho legal do qual acordaram. Dessa forma, o rodízio não vai melhorar o trânsito, e permaneceremos na m**** de sempre. (Talvez a classe C se mobilize no sentido de poder adquirir mais de um carro e ampliar o círculo - as montadoras agradecem e haja redução de IPI e hora extra de domingo a domingo...).

A mim, cabe apenas lamentar. De apenas dois dias em que não uso ônibus, um deles terá de ser todo reorganizado, porque tenho menos de uma hora para me deslocar de uma cidade a outra. E faço isso com o pesar de ter sido prejudicada pelo individualismo alheio e, ao mesmo tempo, com a consciência tranquila de que só uso meu carro quando necessário. Porque é mais econômico, porque leio no ônibus, porque não tenho paciência de dirigir, porque nem sempre há onde estacionar... por essas e outras, prefiro lutar para que o ônibus torne-se um lugar melhor do que viver encapsulada no meu carro em meio a uma Agamenon Magalhães completamente parada. E, ao mesmo tempo, ter o direito de escolher quando usar meu carro, baseado na crença de que as pessoas têm bom senso e são capazes de escolher. Mas livre-arbítrio sem bom senso pode ser uma arma. E a ideia de jerico desse rodízio é a prova de que está cada vez mais difícil esperar algo de bom do ser humano.

Friday, March 22, 2013

O Facebook e a institucionalização da indireta

Você acha scarpin um sapato cafona, sua colega de faculdade não vive sem os seus. Na vida real, repleta de situações assim, é fácil evitar saias justas: basta não dar sua opinião - ainda que seja apenas sua opinião - na frente dela e pronto: tem-se um círculo social saudável e "amizades duradouras". Simples assim? Não, né? Não é à toa que a vida social é repleta de gafes, de gente que diz "tal nome é horroroso", e é surpreendido com a resposta "é o nome da minha mãe", coisas do tipo... É tão corriqueiros que o mal-estar das gafes não costuma durar mais que alguns minutos, e fica apenas a lembrança para render boas risadas.

E que tem o Facebook com isso? Penso eu que, numa mídia social onde cada perfil cadastra uma infinidade de perfis como "amigos", e na condição de "amigos" tais perfis podem ver o conteúdo que você posta, fica mais difícil filtrar o que se diz e evitar as tais "gafes". Até porque, entendo eu que, a partir do momento em que você opta por entrar numa rede social que o recebe com a pergunta "o que você está pensando?", deve estar preparado para ler o que o outro está pensando e para dizer o que está pensando também.

Nesse sentido, o Facebook está-nos impondo o árduo exercício de lidar com a diferença, exercício no qual eu não sou lá o melhor dos exemplos. Assumo publicamente que há pessoas com quem convivo na "vida real", que acho boas companhias, agradáveis e tal, mas cujos perfis no Face são insuportáveis. É aí que mora o problema: com a correria do dia a dia, e a convivência reduzida a encontros via Face, tentemos a não mais conseguir distinguir o ser humano do perfil. Nesse sentido, a maneira como cada um lida com a superexposição que a rede nos oportuniza chega a criar feudos na rede.

Por outro lado, diante da diversidade de perfis "amigos" que a rede nos proporciona, é praticamente possível responder à pergunda "o que você está pensando?" sem, inevitavelmente, pisar nos calos alheios. Se você compartilha uma tirinha sobre quem foografa comida pra pôr no Insta, logo vem uma de "fotógrafos gastronômicos" sente-se ofendida, e criam-se os rumores da tal "indireta". A milenar indireta ganha, na rede social, uma mania de perseguição. Lógico, não gratuitamente. Consigo identificar a léguas de distância casais trocando farpas sob a forma de posts no Face, pessoas desiludidas publicando suas indiretas para os(as) ex, etc. É inegável que o Face potencializa o alcance dessas coisas e torna pública a troca de farpas, já que as publicações chegam ao seu perfil sem que você precise correr atrás dela.

Por outro lado, o bombardeio das indiretas (que, ironicamente, serviu de inspiração para a fanpage "indiretas do bem": a rigor um contrassenso, mas com mensagens divertidas e bem-intencionadas - e indireta bem-intencionada é no mínimo inusitado) leva a rede a uma paranoia generalizada, a uma mania de perseguição constante. De modo que, muito embora todos saibam da impossibilidade de se agradarem gregos e troianos, nem sempre estão dispostos e serem identificadas com tirinhas, piadas, etc. Não que eu ache legítimo piadas envolvendo minorias, grupos discriminados, etc. Mas comecei a pensar no quanto isso era grave quando gostei de um comentários satirizando determinada atitude e fui quase que automaticamente compartilhar. De repente, um estalo: se eu compartilhar, pessoas daqui do perfil vão achar que é indireta e vou criar um mal-estar. Parei. Desisti. Mas fiquei até hoje ruminando o acontecido.

Como disse, não sou o melhor dos exemplos de boa convivência em rede social (tampouco fora dela). Sou adepta do "está na chuva, é para se molhar", o que no Facebook pode ser traduzido em: se está se expondo, esteja preparados para curtidas e trolladas. Não fique só esperando as curtidas e fica doidinho com as trolladas. É assim comigo, por que eu pouparia alguém? Nem de longe sou politicamente correta e, assim como no cara a cara, não tenho o menor pudor de falar o que penso. E não faço isso por impulso, faço de caso pensado mesmo. Não importa se tenho poucos amigos, vale mais saber que esses poucos confiam em mim e têm em mim a certeza de ouvir o que eu penso sempre, sem meias-palavras nem comentaziozinhos às escondidas. Logo, se sou assim na "vida real", com meus amigos de todas as horas, por que alguém haveria de pensar que seria diferente com colegas, vizinhos, conhecidos distantes, etc.?

Portanto, se gostar da tirinha, compartilho. Se determinada atitude me causa espasmo de rir, vou trollar. Posta foto até c*gando? Fique à vontade, mas esteja ciente de que superexposição dá à audiência o direito de comentar - para o bem ou para o mal. Assim como meus constantes acessos de acidez têm lá seus comentários desagradáveis. Mas a mania de perseguição, que faz com que qualquer comentário de reprovação ganhe contornos de "indireta", não passa de um individualismo exacerbado, de uma sensação de que todos os holofotes estão voltados para o cidadão a ponto de qualquer carapuça lhe servir. É assim que tornamos o Facebook um ambiente cada vez mais desagradável de conviver, uma rede "social" que perde cada vez mais o caráter de social no sentido de que não aproxima pessoas, mas faz com que o individualismo nosso de cada dia nos faça empurrar nossa rotina goela abaixo para nossos "amigos". E aí, amigo, vale a máxima: a gente só dá o que tem. Quem tem foto de balada dá foto de balada, quem tem mensagm de autoajuda dá mensagem de autoajuda, e quem tem acidez... bem, este último é o meu caso.