Saturday, January 18, 2014

Antirrábica [des]humana

Certa vez, assisti na TV uns veterinários protestando contra a total ausência do Poder Público quanto às medidas de imunização contra a cinomose, uma doença que causa muito mais sofrimento.  ao canino do que a raiva. Segundo ele, os representantes do Poder Público alegava que a cinomose não era transmissível aos humanos, não representava um risco para nós e, por isso, não se imunizavam os cães. Fiquei chocada com tamanho antropocentrismo, com esse pressuposto ridículo de que nossos direitos estão acima dos direitos de quaisquer espécies.

Pois bem... esta semana, cheguei à universidade e fui recebida por uma gatinha que sempre está lá em frente ao centro onde estudo. Ela fica sob os cuidados de um senhor que vende lanches em frente ao prédio. Cheguei lá, falei com ela, ela miou para mim e fiquei alisando, enquanto ela passava a cabeça na minha mão. Num determinado momento, ela me mordeu com força, fazendo um corte meio profundo na minha mão. O senhor me informou que ela era vacinada, que não havia perigo. Mas as pessoas começaram a me botar terror dizendo que animais vacinados não desenvolviam a raiva, mas podiam transmiti-la e... bem, eles venceram: fui a um posto de saúde tomar vacina.

Foi nesse momento que me deparei com um discurso surreal. A médica disse que os animais da universidade eram um estresse na vida dela, pois estavam sempre fazendo vítimas. Que a federal era um caso de saúde pública, pois estava repleta de animais por toda parte atacando pessoas (pensei que ela estivesse falando de hooligans, mas não, era de animais). Que o "pessoal da defesa de animais" fazia "um trabalho muito bonito", mas que eles não sabiam do risco que aquele tanto de cães e gatos soltos por aí blá bá blá Que já tinha mandado a carrocinha ir lá na universidade uma vez recolher certa cadela, mas que os professores e alunos fizeram um paredão e impediram (ufa!).

Então, disse que o ideal seria chamar a carrocinha para recolher a gata. Disse-lhe que a gata estava todo dia no centro onde estudo, que eu podia observá-la todo dia sem a submeter a nenhum tipo de sofrimento. Ela então pediu que eu levasse a gata para minha casa e a observasse. Disse-lhe que ela ficava sob a responsabilidade de um senhor, que ele é muito apegado a ela (e ela a ele), que a gata sentiria falta do cantinho dela (na árvore onde ficam sua água e ração).

Saí de lá com ódio dessa médica. Ela dizia aquele horror todo como se estivesse falando a coisa mais normal do mundo, como se a carrocinha fosse uma coisa boa, como se colocar a nossa saúde acima dos direitos dos animais fosse algo justo e legítimo. Saí de lá com nojo de todo esse discurso. Cheguei à universidade, conversei com o dono da gatinha, ele me disse que ela passava a noite na universidade sozinha, mas que durante o dia estava sempre lá, sob os cuidados dele. Que ela estava vacinada e com toda a documentação em dia. Que uma veterinária voluntária lá da universidade rural prestava assistência à gatinha, ia sempre lá, vacinava, cuidava... aquilo me deu um alívio: o mundo não é só feito de egoístas.

Quanto à minha mão, tomei antirrábica "humana", amanhã tenho a segunda dose, e todo o grande infortúnio será passar quinze dias sem beber (depois dos cinco meses de celibato pós-isotretinoína). Infortúnio pouco para punir uma pobre gatinha com um destino tão [des]humano.