Wednesday, February 04, 2015

Meu amigo "veadinho" e os bem-intencionados do nosso círculo social

O caso GogoJob me deixou bem feliz com a postura do portal (sobre ficar triste com a postura da agência, não me surpreendi, sou professora de Administração e trabalho há algum tempo com meus alunos as armadilhas dos discursos bonitos de "gestão de pessoas"). Mas a discussão me trouxe a lembrança de uma situação que vivenciei ano passado. Num salão, tava eu lá conversando com uma das profissionais quando ela me contou que lá não havia um cabeleireiro gay porque o dono era evangélico e acreditava que admitir um profissional com esse perfil iria de encontro à sua religião.

E continuou: "O pior é que tem muita gente aqui que acha que ele tá certo, sabia?"
Eu, estarrecida: "Como assim?!"
Ela: "Quase batem em mim quando eu disse que queria ter um coleguinha 'veadinho', que adoraria ter um 'veadinho' aqui, esse ambiente de trabalho ficaria bem leve e engraçado. Eu queria um 'veadinho' aqui pra animar nossos dias"

Respirei fundo. Era só o que eu conseguia fazer naquele momento.

Esta talvez seja uma das formas mais bizarras de lidar com os LGBTs: como ferramenta, instrumento, meio pra qualquer coisa. Eu poderia dizer: "Amiga, não é bem assim, o seu coleguinha gay, se aqui trabalhasse, teria as mesmas funções que você, seria cabeleireiro/maquiador/esteticista, e não palhaço. Não tá aqui para 'animar' o dia de ninguém". A frase, apesar de "bem-intencionada", tem algo de perverso.

Nessa linha de pensamento "bem-intencionado" (nunca ouvi frase mais sábia do que "o inferno tá cheio de bem-intencionados"), lembrei da declaração de um conhecido que um dia quase me fez vomitar: "Eu não tenho nada contra gay. Eu acho ótimo que 'minha mulher' [ele deve ter comprado uma] tenha um amigo gay, porque aí ela não me perturba com os problemas dela. Quando ela vem me encher com os problemas, mando ela conversar com o amigo 'veado' dela, porque ele não corre o risco de comer ela mesmo...". Eu nem vou entrar no mérito da qualidade da relação que ele cultiva com a esposa dele (segundo meu bophe, pra esse tipo de homem, mulher é tão somente a parte da b*ceta que ele não come). Mas tratar o gay como um bichinho de pelúcia (porque nem bicho de estimação deve ser tratado dessa maneira) ou a Barbie da sua companheira é no mínimo estupidez.

Queria dizer que, se você acha que tá contribuindo para a dignidade do LGBT com esse tipo de postura, você tá fazendo isso errado, amigue. Sobretudo porque a dignidade dessas pessoas passa pela atitude simples que é vê-la como igual a você, olhar o ser humano antes da orientação sexual, e não o contrário. Isso parece muito óbvio, mas não entra na minha cabeça que em pleno século XXI saber com quem A ou B vai pra cama seja um critério para definir que papel aquele indivíduo vai ocupar na sociedade. Se mais intimidade tivesse, diria à moça do salão "Amiga, gay não é palhaço e não tá aqui pra te fazer rir, o nome do que você procura é 'cócegas', qualquer criança pode fazer isso por você". Ao conhecido, mandaria confiar mais no próprio pau. No dia em que meu bophe precisar que eu só me relacione com pessoas que não correm o risco de comer, eu mando ele procurar um psiquiatra, não uma companheira. Aliás, companheiro é tudo que o cidadão da história não é. Mas isso é outra - e longa - história...