Friday, September 16, 2011

Eu, "doméstica": a saga da gata borralheira*

De repente, eu tava num condomínio, onde todos olhavam desconfiados para mim. Os rapazes que cinheci moravam lá, tinham todos os luxos, casa, comida boa, hora pra chegar e sair, "pais". E eu só queria ter o que comer. Olhava meus novos colegas, os três rapazes: eles tinham comida a hora em que queriam, tava sempre lá, posta, e se não era suficiente bastava pedir mais. E eu só queria tero que comer na hora em que bem quisesse. Comecei a frequentar a casa dos três rapazes - dois deles eram irmãos, mesmo sem ser convidada. Arregava uma refeição aqui e ali e comecei a engordar - eu vivia na pele e no osso de tanta fome. Os "pais" dos rapazes passaram a me oferecer refeições - eu pedia, eles davam; às vezes nem precisava pedir. Mal sabia eu o preço que iria pagar por essa comida: minha liberdade.

Certo dia perceberam que eu não estava engordando, e sim grávida. Não demorou muito, a hora do parto chegou. Eu desamparada e amamentando, eles então decidiram me acolher. Recebia comida, carinho, cuidados. Os bebês também. Tomavam conta dos meus filhos quando eu precisav me ausentar. Foi mais de um mês de aleitamento materno, meus filhos protegidos do frio e dos perigos. Até que eles começaram a desaparecer um a um. Primeiro dois meninos, depois uma menina. Restou apenas uma. Passei a noite passada chorando um choro angustiado e procurando meus filhos, que até então não voltaram. E eu ainda tinha tanto pra lhes oferecer. Meus seios inchados agora são exclusivos da única menina que permaneceu.

Decidiram não me dar mais comida, passei 12 horas com fome. E me prendiam para que eu não fosse pedir comida em outra casa. Até que me amarraram e me puseram no carro. Eu fiquei extremamente agrevvisa, foram muitas mudanças na minha vida nos últimos três dias. Cheguei a um lugar cheio de animais - grandes, pequenos, cachorros, coelhos... E um cara vestido com uma capa branca me deitou numa mesa e me espetou com uma agulha. Agora estou sonolenta. Eu tento controlar a vontade de dormir pra sair desse lugar, pra tentar encontrar meus filhos. Pra comer algo antes, porque nem força pra procurá-los tenho.

O sono começa a me vencer. Na minha frente, o cara de branco e as pessoas que me acolheram. E eu que pensava que elas gostavam de mim...

Eles me olham com um misto de carinho e compaixão, como se estivessem a me fazer o bem. E eu me lembro dos três rapazes: se pagaram esse preço para ter uma família. Se eles são felizes com essa gente, talvez um dia eu venha a ser, e esse seja o preço que eu tenha de pagar para ser uma gata doméstica. Mas até que ponto vale a pena ser animal "doméstico"?

Penso num prato cheio de ração de atum, carinho na cabeça, em meu filhos de volta, mas o sono é tão forte que...

* Neste exato momento, Chris deve estar sendo histerectomizada. Sua única filhinha remanescente, depois de chorar muito a falta da mãe na caixinha, adormeceu no meu colo. Boa sorte, Chris.

2 comments:

Heber Costa said...

Que bom texto.

Macabea said...

Obrigada! Eu tava arrasada, a gata tinha acabado de sair pra histerectomia, tava assustadíssima. Pior que minha mãe falou que lá foi exatamente assim: ela ficou lutando contra a anestesia até apagar subitamente. Mas tô bem mais tranquila que a única filhinha que restou foi adotada pelo vizinho do lado, ou seja, ela mama e brinca com a mãe todo dia... Graças a Deus.